Captar água de mananciais públicos para irrigar
lavouras não é furto. Por isso, o 3º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul absolveu um agricultor condenado no primeiro grau por retirar
água sem autorização nem pagamento de rio que alimenta uma barragem
administrada pelo Instituto Rio Grandense do Arroz - Irga.
Por maioria, o colegiado entendeu que o agricultor
captou águas do arroio Capané a jusante (em direção à foz, fluxo normal) da
barragem do Irga, e não a montante (em direção à nascente, contra-corrente) do
seu acervo de contenção. Ou seja, não ficou evidenciada a conduta típica de
subtrair coisa alheia móvel, como sustentava o voto minoritário do
desembargador João Batista Marques Tovo, que ficou vencido no julgamento de
Apelação que manteve a sentença condenatória.
O relator dos Embargos Infringentes e de Nulidade
interpostos no 3º. Grupo Criminal, desembargador Aymoré Roque Pottes de Mello,
concordou integralmente com o entendimento expresso no voto minoritário, no que
foi seguido pelos demais integrantes do colegiado – à exceção da desembargadora
Genacéia Alberton.
‘‘O litígio se estabeleceu porque o Irga pretendia
cobrar uma taxa pelo uso da água, sem base contratual (ele não assinou qualquer
contrato), legal ou administrativa, e ele não se submeteu a isso, como fizeram
seus lindeiros, por certo. Em outras palavras, fez-se mau uso do sistema penal
para constrangê-lo a pagamento indevido. Simples assim, a controvérsia se
desata. O fato imputado é atípico’’, fulminou no voto o desembargador Tovo,
cujo entendimento acabou prevalecendo em sede de Embargos Infringentes.
Furto de água, denuncia o MP
O arrozeiro foi denunciado pelo crime de furto após
ter captado água na Barragem do Capané, interior de Cachoeira do Sul, para
irrigar sua lavoura, de 11,8 hectares. Segundo a denúncia do Ministério
Público, a captação tida como irregular ocorreu no período de outubro de 2012 a
março de 2013. O prejuízo ao Irga, que tem autorização para celebrar contrato
de fornecimento de água represada na barragem com os arrozeiros, foi estimado
em R$ 24,2 mil.
O denunciado não negou a captação. Alegou que a bomba
foi colocada em arroio público, que não é domínio do Irga, o que afasta a
elementar de subtração de coisa alheia. Argumentou, ainda, que o “levante de
água” se deu abaixo do maciço, quando o leito já escoava para o Rio Jacuí.
Crime comprovado, diz a sentença
Por entender comprovada a conduta descrita na denúncia
do MP, a 1ª. Vara Criminal da Comarca de Cachoeira do Sul condenou o arrozeiro
a um ano de cadeia, pena convertida em pagamento de multa e prestação de
serviços comunitário. Para a juíza Rosuita Maahs, a prova testemunhal atestou
que o réu instalou uma bomba de captação de água diretamente no Arroio Capané
sem qualquer contraprestação ao Irga na safra 2012-2013. Isso, segundo a
julgadora, derruba alegação de que só haveria crime se o réu tivesse captado a
água diretamente nos canais construídos e mantidos pela autarquia estadual.
‘‘E para que não reste dúvida quanto à subtração da
água da barragem, tem-se o depoimento de Fernando, o qual afirmou que ‘a
Barragem só existe porque o Arroio Capané tem água’. Ora, se alguém retira água
do Arroio Capané, está impedindo que a mesma seja reservada na barragem’’,
deduziu na sentença.
Além disso, a juíza afirmou que o contrato padrão do
Irga não isenta do pagamento o agricultor que utiliza água do leito do Arroio
Capané, do Arroio Capanezinho ou de outro manancial localizado na rede de
canais que distribui água da Barragem do Capané. E o réu tinha plena ciência
disso, tanto que, em safras anteriores, contratou o serviço de fornecimento de
água com a autarquia.
‘’Entendo que a conduta do acusado configurou a
subtração de coisa alheia móvel, já que a água, embora bem público, estava em
arroio a desaguar em barragem, sob a custódia do Irga, impondo-se a condenação
do acusado’’, definiu Rosuita Maahs.
Condenação confirmada, mas sem unanimidade
Em sede de recurso, a 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS
confirmou os exatos termos da sentença, mas por maioria. Ficou vencido o
desembargador João Batista Marques Tovo, que deu provimento à Apelação para
absolver o agricultor. Ele entendeu que a conduta descrita na denúncia do MP é
atípica – ou seja, não se enquadra no tipo penal do artigo 155 do Código Penal.
Assim, o absolveu com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo
Penal – ausência de infração penal.
Tovo explicou que o furto só se perfectibiliza quando
‘‘a coisa tomada para si’’ é alheia, pressupondo propriedade privada. E, como é
do conhecimento geral, as águas superficiais fluentes são bens públicos de uso
comum. ‘‘Não obstante, as águas públicas podem ser apropriadas, e é o que
ocorre em relação às águas da Barragem do Capané, administrada pelo Irga.
Assim, se alguém coletar as águas apropriadas na contenção feita por essa
represa, sem dúvida, cometerá o crime de furto de água. Mas não é esse o caso
aqui’’, ponderou no voto.
A jusante e a montante
Ele explicou que a barragem, que fica à montante da
propriedade do réu, não pode apropriar-se de toda a água fluente do sistema
hídrico, causando a interrupção do curso do Arroio Capané. Por isso, o Irga
está obrigado a mantê-lo com a vazão de parte das águas contidas pela barragem,
obviamente interruptiva do seu curso natural. Todavia, discorreu, as águas que
são devolvidas ao seu curso natural retornam à qualidade de públicas de uso
comum, não pertencendo mais ao Irga. Tanto assim que acabam escoando pelo Rio
Jacuí ao final de seu curso.
Para o desembargador, se o Irga quiser incluir o
Arroio Capané no seu sistema de distribuição de águas, impondo pagamento a quem
dele tira proveito, deve, antes, obter a regulamentação legal ou
administrativa. Sem isso, a exploração jamais poderá configurar o tipo criminal
do furto, pois, no caso concreto, trata-se de um estratagema para obter o que a
lei e o regulamento administrativo não contemplam.
‘‘E, calha deixar bastante claro, não é o agricultor à
jusante que tira proveito da barragem, e sim, a barragem à montante que se
apropria de bem público de uso comum, ainda que com o adequado intuito de
regular o uso das águas do arroio. E o Irga não pode fazer se apropriar de
todas as águas do arroio’’, definiu o desembargador.
Como o resultado do julgamento na 5ª. Câmara Criminal
não foi unânime, o réu interpôs o recurso de Embargos Infringentes e de
Nulidade no 3º. Grupo Criminal – formado por julgadores da 5ª e 6ª câmaras
criminais –, que, provido por maioria, acabou derrubando a sentença
condenatória.
Fonte: CONJUR.